George Steiner e a Gramática da Esperança : do Crepúsculo da Criação à Plenitude do Sentido, par Ricardo Gil Soeiro (Infréquentables, 17) (30/08/2011)

Crédits photographiques : Maximilien Brice, (CERN).
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«Language creates : by virtue of nomination, as in Adam’s naming of all forms and presences; by virtue of adjectival qualification, without which there can be no conceptualization of good or evil; it creates by means of predication, of chosen remembrance (all ‘history’ is lodged in the grammar of the past tense). Above all else, language is the generator and messenger of and out of tomorrow. In root distinction from the leaf, from the animal, man alone can construct and parse the grammar of hope. He can speak, he can write about the morning light on the day after his funeral or about the ordered pace of the galaxies a billion light-years after the extinction of the planet. I believe that this capability to say and unsay al, to construct and deconstruct space and time, to beget and speak counter-factuals – ‘if Napolean had commanded in Vietnam’ – makes man of man. More especially : of all evolutionary tools towards survival, it is the ability to use future tenses of the verb – when, how did the psyche acquire this monstrous and liberating power? – which I take to be foremost. Without it men and women would be no better than «falling stones» (Spinoza)» (1).

Haverá escritores infrequentáveis? E a havê-los, como podemos classificá-los? Serão escritores labirínticos, controversos, habitados por cintilantes esperanças e sombrias inquietações, sempre movidos por um espírito radical no seu perguntar desassossegado? Será a sua escrita de difícil penetração (como um Heidegger, um Hölderlin ou um Celan), cultivando um gosto pelo segredo como sugere Jacques Derrida? Será possível, pois, chegar a um consenso sobre o que é um escritor infrequentável? Mas será, objectar-se-á com propriedade, tal consenso desejável? Pois que quando se torna possível classificar ou catalogar um escritor como infrequentável, este deixa de o ser, tornando-se parte integrante de uma tradição respeitável de nomes magisteriais, não mais sendo colocado à margem como fora-da-lei (auβenseiter, segundo a formulação luminosa de Hans Mayer (2)) da literatura dominante… Absolutamente infrequentável este tema de escritores infrequentáveis!
George Steiner, escritor, filósofo, crítico literário, poeta ou pura e simplesmente maître à lire, nascido em 1929 e autor de uma obra monumental a todos os títulos incompulsável, parece filiar-se no filão sem genealogia destes escritores que primam pela singularidade e pela intransigência do seu «humanismo radical» (a expressão é do próprio Stener). Permanecendo insituável nos estudos literários, os críticos e os teóricos da literatura, incapazes de o ler e de o situar e evidentemente ávidos de uma delimitação rigorosa do escopo das suas investigações, aceitam porventura com alguma acrimónia o que no discurso steineriano é impuro e infrequentável : «The theoreticians in power consider my own work, if they consider it at all, as archaic impressionism. As heraldy» (3). Na miragem de encontrar um fio de Ariadne que nos conduza ao epicentro da obra de George Steiner (no sentido de oferecer uma estrita resposta à pergunta «Qual é o seu campo de estudo?»), diversas vozes se ergueram, proclamando ter descoberto esse fio condutor que, quando dogmaticamente exibido, só serve – na nossa óptica – para domesticar um pensamento absolutamente indómito como é o de Steiner. Seja como for, as reivindicações sucedem-se : para Ruth Padel, «a tragédia constitui a base do trabalho de Steiner» (4); Ronald Sharp afirmará que «temos que entender quão profundamente a sua noção de tradução sustenta a sua visão» (5); por sua vez, Edith Wyschogrod rotula a obra steineriana como «uma hermenêutica do holocausto» que se debruça sobre a linguagem e sobre a cultura (6), ao passo que, na óptica de Ihab Hassan, «tudo em Steiner retorna à linguagem, Babel inelutável» (7). Todas estas tentativas de qualificação, numa primeira instância presumivelmente penetrantes, revelam-se, num segundo e mais crítico olhar, manifestamente insuficientes para dar conta da riqueza prismática das reflexões steinerianas. Reportando-se justamente a este Steiner-poliedro, Nathan Scott sublinhará : «The shocking massiveness of his learning, which extends across the entire gamut of humanistic studies; the prodigiousness of his competence in the major Western languages; the speculative power of his hermeneutical reflections; the brilliance of his textual commentary; the piercing eloquence of his prose – all of this helps to make Tolstoy or Dostoevsky, The Death of Tragedy, Language and Silence, In Bluebeard’s Castle, Extraterritorial, After Babel, Antigones, and his various other books form a kind of oeuvre that, in its puissant majesty, is virtually without parallel. Yet an enormous amount of ill will toward him is harbored within the Anglo-American university community. As one of his friendlier critics remarked a few years ago, «he can seem too vehement, hortatory, overbearing; he raises his voice in public.» Moreover, beyond the special kind of intensity and earnestness that belong to his public persona, conventional academicians cannot forgive his polymathic virtuosity, and thus – of this chap who writes on chess and mountain-walking and philosophy and imaginative literature and poetics and various other adjacent subjects – they ask dismissively, «But what is his field?» (8).
À legítima preocupação de compulsar as intermináveis galerias deste rosto inabarcável poderíamos começar por responder com a sua «heterotopia», situando-o na genealogia de figuras que o próprio Steiner elege como «extraterritoriais». Num ensaio que empresta o nome à colectânea Extra-Territorial. Papers on Literature and the Language Revolution (1972), o autor, convocando diálogo com escritores como Heinrich Heine, Samuel Beckett, J. L. Borges e Vladimir Nabokov (outros há que com eles se podiam geminar, designadamente Elias Canetti ou mesmo Fernando Pessoa), sublinha o seu plurilinguismo e a forma radical como habitaram, «multivocalicamente», a língua na qual redigiram as suas obras. O interrogar steineriano (a que V. Graça Moura aptamente aplica a definição de «vasos comunicantes» e nós, aproveitando uma outra metáfora orgânica, poderíamos traduzir também por «membranas osmóticas») é herdeiro do modus operandi heideggeriano, que, afirmando Wege, nicht Werke («caminhos, não obras»), ventila o seu modo plural e não-linear de interpelar o real : «De Real Presences a After Babel, de Antigones, a Grammars of Creation, passando por tantos outros títulos, Steiner propõe-nos a própria reflexão em que não se implica apenas intelectualmente, mas também vivencialmente, e em que, implicando-se, nos explica. Como Montaigne, ao ser lido por nós, ele transforma-se em interlocutor que nos lê, enquanto nós, ipso facto, nos lemos melhor também a nós mesmos, neste tempo de descontinuidades, de rupturas, de derivas, interrogações e desnortes de toda a ordem» (9).
George Steiner é ainda infrequentável, na medida em que insiste em visitar as masmorras do castelo do Barba Azul, passando uma temporada no inferno que foi Auschwitz. Na sua óptica, e como uma «espécie de sobrevivente», a experiência singular dos campos de concentração problematizou, de um modo radical e irreversível, não só a visão da história como também a visão da humanidade lato sensu. Analisando a íntima relação entre linguagem e silêncio e confrontando-se com a realidade negra da Shoah, o nosso autor defenderá a criação de uma nova linguagem (uma linguagem im Norden der Zukunft como no poema de Paul Celan, purificada das trevas em que a era do pós-holocausto nos deixou mergulhados), passível de veicular o horror das vítimas da desumanidade de Auschwitz. Como, interroga Jean-François Lyotard, medir um terramoto que destruiu todos os instrumentos de medição? E, ainda assim, existindo esses instrumentos, teríamos o direito de proceder a essa mediação? Na verdade, a posição steineriana reverbera a célebre ars poetica interdicta de Theodor Adorno, que assegurava que, depois de Auschwitz, não mais seria possível escrever poesia. Mais tarde, o próprio autor de Minima Moralia viria a rever a radicalidade do seu parecer, aquando da sua convivência aturada com uma poesia que parecia falar das profundezas mais recônditas. Esse artífice de sombras chamava-se Paul Celan e desempenhará um papel matricial na redefinição da concepção steineriana do silêncio. Tudo se passa como se Steiner, após uma primeira postura forçosamente esfíngica, temesse sucumbir à tentação de atribuir uma aura de mistério ao holocausto. Para Steiner, Celan é «um poeta ainda mais necessário do que Rilke» (10). A experiência poética celaniana obedece ao desígnio da linguagem «a norte do futuro», facto que se repercute na sua experiência linguística «extraterritorial», na sua prática da tradução, na sua adopção da língua dos «mestres que vêm da Alemanha», bem como no fascínio que nutre pelo silêncio. Como último a falar (é esse o título de um ensaio que Maurice Blanchot dedica ao poeta (11)), a Celan é indeclinável a descida a esse silêncio, viagem simultaneamente penosa e indispensável. Mas poderá a escrita triunfar sobre o esquecimento? Poderá a esperança espreitar timidamente por entre as masmorras do castelo do Barba Azul? Ou estaremos condenados a errar para sempre na noite, recolhendo os cacos de uma impossível teoria da cultura?
Esta escuridão (que atinge a sua intensidade máxima no posfácio ficcional que acompanha The Death of Tragedy) é, de facto, um dos traços distintivos do pensamento de Steiner que, não obstante a diversidade de orientações que o vai animando, nasce da experiência aporética do mal tal como ela se manifestou nos campos de concentração. Com efeito, para o nosso autor, agora neste tempo de epílogo em que o «eclipse de Deus» (Buber) se abateu sobre os homens, vivemos num tempo depois da Queda, depois de Babel, depois de Auschwitz. Vivemos indefinidamente depois... Evidente se torna que a sua imensa obra – na vasta trama de inquietações que a move e no amplo gesto do seu abnegado «humanismo radical» a que já nos referimos (desde Tolstoy or Dostoevsky até Real Presences, passando por In Bluebeard’s Castle) – dá conta desta tonalidade menor em que se espraia o seu inquieto perguntar. E, no entanto, declara em After Babel : «Drown as we may, the idiom of hope, so immediate to the mind, thrusts us to the surface» (12).
Sublinhado que está o negro diagnóstico que Steiner traça em relação à possibilidade de uma teoria da cultura, importa agora atentar no modo como o nosso autor encontra nas artes do sentido um lugar privilegiado para uma possível e sempre precária redenção para o silêncio de Deus em Auschwitz. Face à ignomínia das horas bárbaras que não souberam preservar a centelha do humano, é de forma radical que Steiner responde com uma hermenêutica que importa agora tematizar de modo necessariamente sumário. Em Real Presences (1989) – obra absolutamente central que é anunciada pelas páginas inaugurais de Tolstoy or Dostoevsky e pela ontologia da leitura consubstanciada em Antigones, bem como pelos ensaios The Retreat from the Word (1961) (13), Silence and the Poet (1966) (14), e ‘Critic’/‘Reader’ (1979) (15), o autor começa por sublinhar a dívida que a linguagem continua a dever a sistemas de crença e a Weltanschauungen obsoletos. A linguagem é habitada por «metáforas vazias» : ainda aludimos ao nascer e ao pôr-do-sol, como se o modelo coperniciano não tivesse substituído o ptolemaico e, quando nada há que o justifique empírica e/ou racionalmente, a palavra «Deus» insiste em pairar obstinadamente sobre nós como uma relíquia linguística, assombrando-nos enquanto «fantasma gramatical, um fóssil enterrado na infância da linguagem racional.» Ora, é justamente esta vacuidade no coração da linguagem que constituirá o alvo da contestação steineriana. Contrariamente a essa vacuidade, o que Real Presences ousa declarar é que qualquer entendimento da essência da linguagem assenta, em última análise, na suposição da presença de Deus. Da experiência do sentido estético, em particular, se infere a «possibilidade necessária» desta «presença real.» Steiner declara que «a aposta no sentido do sentido, o potencial de compreensão e de resposta que existe quando uma voz humana se dirige a outra, quando nos confrontamos com o texto e com a obra de arte ou a forma musical, quer dizer, quando encontramos «o outro» na sua condição de liberdade, é uma aposta na transcendência. Esta aposta – que é a de Descartes, de Kant e de todos os poetas, artistas ou compositores de que temos explicitamente notícia – afirma a presença de uma realidade, de uma «substanciação» (é óbvio o alcance teológico deste termo) no interior da linguagem e da forma. [...] A hipótese é aqui não a de que «Deus» é por a nossa gramática ser inactual, mas a de que a gramática vive e engendra mundos porque aposta no ser de Deus» (16). Incipit de Real Presences, estas palavras sintetizam toda a reflexão steineriana em torno das «presenças reais.» O poema, a tela, a sinfonia não são autotélicos, constituindo-se antes como lugares privilegiados de encontro entre liberdades humanas que veiculam a própria essência da alteridade humana. As implicações, Steiner não o nega – antes o sublinha exemplarmente e desde a aurora deste seu ensaio sinfónico (17) que é Real Presences –, são teológicas. Na verdade, a teologia do sacramento enquanto lugar e ocasião para a humanidade se encontrar com o Outro Divino é o modelo que Steiner encontra para experiência estética dotada de sentido. Assim como o objecto ou acontecimento sacramentais constituem o vínculo entre o Divino e o Humano, também a obra de arte se assume enquanto arena de encontro de liberdades humanas (18). Steiner lança-se, assim, numa aposta (que pode muito bem resultar num arrojo semelhante ao de Ícaro) no sentido do sentido e na radicação ontológica da linguagem suportada por uma «transcendência» que as metáforas vazias abjuram. Ao longo de todo o seu itinerário intelectual, Steiner abraçará uma concepção logocêntrica da linguagem que procura resistir às tentações do niilismo contemporâneo em que a linguagem já não é capaz de dizer o mundo. Assim, para o nosso autor, se quando falamos, somos capazes de «inventar, reinventar o ser e o mundo», então a linguagem constitui a gramática da esperança que nos permite superar e transcender a nossa condição humana. Steiner, na esteira de Ernst Bloch (19), manifesta o seu deslumbramento perante o facto assombroso de haver formas verbais futuras. Concebendo a essência do homem como a sua capacidade de «sonhar em frente» – a sua faculdade compulsivamente exercida de construir «o que é agora» como «o que não é ainda», Bloch sustenta que o contrafactual e o condicional, porque configuram uma gramática da renovação permanente, forçam-nos a começar de novo todas as manhãs e a deixar para trás os desastres da história. Sem esta gramática da renovação, que Steiner designa por gramática da esperança, soçobraríamos numa atitude estática, tolhidos pelos sonhos desfeitos e a realidade seria tudo o que os factos são e nada mais. Na óptica steineriana, a linguagem é, pois, o instrumento essencial da recusa humana de aceitar o mundo tal como é. Sem esta recusa, que se traduz na criação de «contra-mundos» e que não poderá ser dissociado da gramática das formas contrafactuais e optativas, estaríamos condenados a fazer girar para sempre a roda do presente. Mercê dessas formas avançamos numa «densa ilusão de liberdade». É porque o homem habita o tempo verbal do futuro e a nossa sintaxe transborda de amanhãs que nos é possível falar e sonhar, libertando-nos da prisão do orgânico (20). Citando Nietzsche que, em Morgenröte, declara que o génio do homem é o génio da mentira e Ibsen que declara que o homem vive e progride graças à mentira vital, Steiner reconhece como absolutamente essenciais a capacidade e a necessidade humanas de contradizer ou de desdizer o mundo, de o imaginar ou de o falar de outro modo : os nossos conjuntivos, os nossos condicionais, os nossos optativos, os «se» das nossas gramáticas, possibilitam uma contrafactualidade indispensável que é radicalmente humana e que nos permite superar os constrangimentos materiais do nosso mundo empírico-biológico.
Falar de George Steiner é, decididamente, deixarmo-nos seduzir pela lógica do salto, de um salto de um escritor absolutamente infrequentável que jamais se perdoará. Na fase decisiva da sua argumentação em favor das «artes da transcendência», Steiner deixa-se arrebatar por um passo para além do bom senso moral que, nietzscheanamente, não se deixa aprisionar pelas algemas de um conhecimento ingénuo e adorador das certezas, e nas ciladas que todos os labirintos dedutivos nos armam : «um passo embaraçoso para além das palavras, resultando justamente o embaraço deste para além das palavras. Podemos dar um nome, quase técnico, de transcendência a esta passagem. Dante ajuda-nos aqui, pois também ele fala de «virar a proa (la poppa) na direcção da manhã.» O que pode dar lugar a um folle volo, um «voo louco» ou «insensato». Mas não vejo outro caminho.» Até bem recentemente (a baliza temporal referida por Steiner é a de 1870-1930), a relação de «confiança» garantia a fenomenologia do discurso enquanto uma relação indispensável no que diz respeito à presença e à alteridade do ser e do mundo, uma pressuposição de que o ser é, por muito precariamente que o seja, dizível : «Não haveria história tal como a conhecemos, nem religião, metafísica, política ou estética conforme a nossa experiência as vive, sem um acto inicial de confiança, de convicção, acto mais fundamental, mais axiomático e de longe, do que qualquer «contrato social», do que qualquer acordo de postulação do divino. Esta instauração da confiança, esta entrada do homem na cidade do homem, é a relação que se trava entre a palavra e o mundo. Só à luz de tal confiança pode existir uma história do sentido que, numa contrapartida exacta, é um sentido da história. Do canto de tristeza rebelde de Gilgamesh perante a morte do seu companheiro, do dito enigmático de Anaximandro sobre o segredo da equidade no cosmos e na vida do homem que respeita as leis, até quase (é este «quase» que estou a tentar situar e definir) ao presente, a relação entre a palavra e o mundo, interior e exterior, foi garantida em termos de «credibilidade». Quer isto dizer que foi concebida e existencialmente actualizada como uma relação de responsabilidade.» De acordo com Steiner, a fissura que fez estalar este pacto entre palavra e mundo constitui uma autêntica revolução de espírito na história ocidental, definindo a própria modernidade. A era original do Logos, da declaração do ser, foi ultrapassada. A humanidade entrou numa segunda era cultural e semântica, aquela do «epílogo» ou da «pós-Palavra» (after-Word), um tempo quando o próprio sentido do sentido naufraga e é coberto com um manto de dúvidas. Steiner aponta dois escritores que marcam esse tempo de viragem : Mallarmé e Rimbaud. Se, por um lado, Mallarmé erigiu o seu mister poético como uma restauração da pureza da linguagem, pureza essa que foi profundamente hipotecada pela crença segundo a qual as palavras correspondem de alguma maneira aos objectos extra-linguísticos a que se referem, e se essa pureza repousa na sua auto-referencialidade, no facto de que a linguagem se fala a si mesma (O canto do Signo, diria Eduardo Lourenço), Rimbaud, por outro lado, é igualmente «revolucionário» quando, na sua célebre declaração Je est un autre, desconstrói a identidade individual da «persona» humana e exibe uma provocação deliberadamente anti-teológica. Na consciência ocidental, tal asserção mina a possibilidade teológica e o conceito do Logos que é imprescindível a essa possibilidade. Steiner esclarece que «Eu é um outro» representa uma «negação sem compromissos da tautologia suprema, do acto gramatical de autodefinição gramatical do «Eu sou o que sou» de Deus. A decomposição praticada por Rimbaud introduz no navio destroçado do eu não somente o «outro», a contra-personalização do dualismo gnóstico e maniqueísta, mas uma pluralidade ilimitada. Enquanto Mallarmé altera a epistemologia da «presença real» numa epistemologia da «ausência real», Rimbaud coloca no coração doravante vazio da consciência as imagens fragmentárias de «eus» outros e momentâneos. E fá-lo de modo e num contexto tais que se torna quase inevitável a intuição de que esses outros-próprios não constituem uma alteridade neutra ou paralela mas uma anti-matéria paródica, niilista, radicalmente subversora da ordem e da criação.» Seja na visão do primeiro Wittgenstein (em que as categorias vitais – aquelas que nos definem a humanidade – são justamente aquelas que não têm jurisdição na linguagem), seja nas modernas ciências da linguagem (que, na transição de uma semântica referencial para uma referência relacional interna, laboram no sentido de extirpar os vestígios da heresia debatida no Crátilo), seja na cartografia freudiana do psiquismo individual, seja ainda na profunda suspeição que a Sprachkritik lança ao feudo da linguagem (Steiner refere o cepticismo inerente a Beiträge zu einer Kritik der Sprache de Fritz Mauthner, a desistência da escrita por parte de Lord Chandos em Ein Brief de Hugo Hofmannsthal, a sátira corrosiva da linguagem em Karl Kraus ou ainda as parábolas sobre o silêncio de Franz Kafka), o facto é que no tempo do «epílogo» começa, com efeito, a retirada da palavra, agudizando-se a fascinação que sobre ela exerce o silêncio. Enquanto seres falantes na idade do a-Logos nós somos livres, ainda que inapelavelmente órfãos de um sentido do Sentido : em Grammars of Creation (2001), que recolhe a semente teológica que germinava em Real Presences, Steiner afirmará que «o que todas as partes devem ter presente é o seguinte : os jogos de sentido não podem ser ganhos. Nenhuma recompensa de transcendência, nenhuma garantia, espera mesmo o mais hábil dos jogadores [...]. O Deus-Pai do Sentido, sob a sua forma de Autor, abandonou o jogo : não há juiz, intérprete ou guia privilegiado capaz de determinar e comunicar a verdade, as verdadeiras intenções da peça [...]. As Tábuas da Lei, que Moisés quebrou num monumento de percepção desconstrutiva, não podem voltar a ser reconstruídas. Se, na realidade, as letras são de fogo, como poderiam não se consumir a si próprias?» Retirou-se Deus, ao passo que de Orfeu fica a lira abandonada.
Como é óbvio, diremos muito sumariamente que o ambiente em que se movem as suas reflexões e o lastro que lhes conferiu coerência e sentido – o da transcendência, levantam suspeitas no hodierno clima de epílogo (tornando-se assim um pensador infrequentável para os nossos tempos humanos, demasiado humanos), «sorrindo com um sorriso vazio» (Rosenzweig) ante o mistério da criação. Agitando ainda um farrapo da sua bandeira logocêntrica, e fazendo-o contra todos os «mestres da suspeita» que de Nietzsche a Derrida teimam em desmascarar as ilusões metafísicas de que ainda padecemos, Steiner declara lapidarmente : «Temos de ler como se.» Este embaraço é consentâneo com a «teologia zero» do «sempre ausente» em Jacques Derrida. E é aqui, na fase final da sua argumentação, que Real Presences retoma a temporada no inferno no Castelo do Barba Azul, confrontando-se com a noite eterna que foi o massacre nas câmaras de gás em Auschwitz e com o trágico silêncio de Deus que aí se fez sentir : «É este ser/estar aí ausente nos campos de extermínio, na devastação do planeta anoitecido, que os textos fundamentais da nossa época enunciam. Surge nas parábolas de Kafka, nas designações de Gólgota do Fim de Festa de Beckett, nos Salmos a Ninguém de Paul Celan. Para invertermos a fórmula de Kierkegaard, é quando o dispensador de auxílio já não auxilia, mas ouvimos ainda o ressoar da sua partida recente, que a luz fútil ilumina a execução de Joseph K., que o Malone de Beckett soçobra vacilante na sua nulidade.»
Somos levados do silêncio de Deus em Auschwitz às artes do Sentido : infrequentável no primeiro momento porque nos obriga a olhar a medusa do mal de frente e sem contemplações; infrequentável no segundo na medida em que ousa apresentar uma teoria hermenêutica que traz à cena filosófica a palavra proscrita por Nietzsche – Deus (O mesmo que se calou em Auschwitz). É com uma metáfora profundamente teológica que Steiner conclui o seu longo ensaio : o mal e o sofrimento que acometem a humanidade são cotejados com a Sexta-Feira da crucificação de Cristo; o Domingo de Páscoa significa a esperança na ressurreição futura em que todas as lágrimas terão sido derramadas e em que não careceremos de arte. Entretanto, diz-nos Steiner, temos que suportar a imensa espera que é o Sábado. A arte, a literatura, a música e toda a imaginação metafísica mais não são do que consolações que dizem a dor e a esperança que nos pertencem agora. Sem elas, o autor não vê como seremos capazes de ser pacientes ao longo desta imensa espera que é a espera do homem.
Quando Steiner se interroga sobre se haverá um único compasso de Mozart passível de exprimir um mal intrínseco, sobre a aporética do mal e o eclipse de Deus em Auschwitz, sobre o silêncio pintado por Chardin ou as últimas palavras de Sócrates e de Cristo, sobre os cafés da Europa ou a arte exacta da tradução, sobre Eurídice e Orfeu ou os labirintos de Borges, sobre as dúvidas de Lord Chandos ou as parábolas de Kafka sobre o silêncio, sobre a desconstrução de Derrida ou os escárnios desolados de Karl Kraus, sobre a coda do Tractatus de Wittgenstein ou o Moisés e Aarão de Schoenberg, sobre o salto absurdo do cavaleiro da fé kierkegaardiano ou o dur désir de durer de Paul Éluard, sobre as «palavras fúnebres» (Leichenwörter) de Paul Celan ou a anti-linguagem hitleriana, sobre a indagação ontológica de Job ou a questionação heideggeriana do ser do Ser (das Sein des Seyns), sobre Dante ou Proust, o que este anarquista platónico – como a si mesmo se chama – opera, e fá-lo com insuperável lucidez, é uma leitura no próprio coração do espanto que assalta o homem. Infrequentável, frequentando os cantos mais inesperados do tecido vivo da nossa cultura com uma paixão sempre intacta.
De Real Presences a Grammars of Creation, passando por Antigones e In Bluebeard’s Castle, ler Steiner é também, e sobretudo, ler-se, e descobrir que, em sentido radical, nada há a dizer sobre um poema, na medida em que é ele mesmo o derradeiro e luminoso dizer; que a música é o mistério supremo do homem; que abriremos a sétima e derradeira porta do castelo do Barba Azul pois abrir portas é o trágico preço da nossa identidade; que em Édipo, em Prometeu e em Ulisses reconhecemos mon semblable, mon frère; que há um compromisso explícito com a transcendência em Ésquilo, em Dante, em Bach ou em Dostoievski; que o silêncio nos faz, em instantes fulgurantes, regressar ao inexpugnável mistério do tempo; que a conjunção do amor com a invenção do tempo futuro tornam a aventura mortal um pouco mais válida.

Notas
(1) George Steiner, Real Presences. Is There Anything in What We Say? (London/Boston, Faber and Faber, 1989), p. 56.
(2) Cf. Hans Mayer, Auβenseiter (Frankfurt am Main, Suhrkamp, 2001).
(3) George Steiner, Errata : An Examined Life (London, Weidenfeld & Nicolson, 1997), p. 6.
(4) Ruth Padel, George Steiner and the Greekness of Tragedy, in : Nathan A. Scott, Jr. and Ronald A. Sharp (eds.), Reading George Steiner (Baltimore/London, The John Hopkins University Press, 1994) p. 99.
(5) Ronald A. Sharp, Steiner’s Fiction and the Hermeneutics of Transcendence, in : Nathan A. Scott, Jr. and Ronald A. Sharp (eds.), Reading George Steiner, op. cit., p. 207.
(6) Edith Wyschogrod, The Mind of a Critical Moralist : Steiner as Jew, in : Nathan A. Scott, Jr./Ronald A. Sharp (eds.), Reading George Steiner, op. cit., p. 151.
(7) Ihab Hassan, The Whole Mystery of Babel : On George Steiner, in : Salmagundi, nos 70-71 (Primavera/Verão de 1986), p. 323.
(8) Nathan A. Scott, Jr., Steiner on Interpretation, in : Nathan A. Scott, Jr./Ronald A. Sharp (eds.), Reading George Steiner, op. cit., pp. 1-2.
(9) Vasco Graça Moura, Sobre George Steiner, in : Os Meus Livros (Lisboa, 2004), p. 65.
(10) Cf. George Steiner, The Long Life of Metaphor : An Approach to the Shoah, in : Berel Lang (ed.), Writing and the Holocaust (New York, Holmes & Meier Publishers, 1988), pp. 154-171.
(11) Cf. Maurice Blanchot, Le Dernier à Parler, Une Voix venue d’ailleurs (Paris, Éditions Gallimard, 2002), pp. 69-105.
(12) George Steiner, After Babel. Aspects of Language and Translation (Oxford, Oxford University Press, 1975), p. 167.
(13) George Steiner, The Retreat from the Word (1961), Language & Silence : Essays on Language, Literature, and the Inhuman (London/Boston, Faber and Faber, 1967), pp. 12-35.
(14) George Steiner, Silence and the Poet (1966), Language & Silence : Essays on Language, Literature, and the Inhuman, op. cit., pp. 36-54.
(15) George Steiner, ‘Critic’/‘Reader’ (1979), George Steiner : A Reader (New York, Oxford University Press, 1984), pp. 67-98.
(16) George Steiner, Real Presences. Is There Anything Real in What We Say? (London/Boston, Faber and Faber, 1989), p. 4.
(17) Real Presences reclama, desde logo, um substrato musical, facto a que, assim o julgamos, não é alheia a posição central que Steiner confere à música. Para Jeff Keuss, «Real Presences reads more like the libretto of a three part opera giving account of the fall of the Humanities in the 20th century than it does a piece of literary criticism per se. Like Wagner’s Tristan und Isolde, Real Presences brings us close to the heart of the arts and humanities and although we may never achieve union with that which we long for, at least remembering what we truly long for may be worth the journey», Jeff Keuss, George Steiner and the Minotaur at the Heart of Love : A Review of Real Presences, in : Literature and Theology (Oxford, Oxford University Press, Vol. 18, Setembro de 2004), p. 351.
(18) A este propósito, cf. Marc Ruggeri (2003), Christi. Lecture et Eucharistie dans l’oeuvre de George Steiner, in : Pierre-Emmanuel Dauzat (dir.), Cahier de l’Herne George Steiner (Paris, Éditions de L’Herne), pp. 287-306.
(19) Ernst Bloch, Das Prinzip Hoffnung. Gesammeltausgabe in 16 Bände (Gesamtausgabe 5) (Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, [1959], 1977). Em After Babel, Steiner afirma o seguinte sobre Bloch : «Ernst Bloch is the foremost metaphysician and historian of this determination. He conceives the essence of man to be his ‘forward dreaming’, his compulsive ability to construe ‘that which is now’ as being ‘that which is not yet’. Human consciousness recognizes in the existent a constant margin of incompletion, of arrested potentiality which challenges fulfilment. Man’s awareness of ‘becoming’, his capacity to envisage a history of the future, distinguishes him from all other living species. This Utopian instinct is the mainspring of his politics. Great art contains the lineaments of unrealized actuality. It is, in Marlraux’s formula, an ‘anti-destiny’. We hypothesize and project thought and imagination into the ‘if-ness’, into the free conditionalities of the unknown. Such projection is no logical muddle, no abuse of induction. It is far more than a probabilistic conventions. It is the master nerve of human action. Counter-factuals and conditionals, argues Bloch, make up a grammar of constant renewal. They force us to proceed afresh in the morning, to leave failed history behind. Otherwise our posture would be static and we would choke on disappointed dreams», George Steiner, After Babel. Aspects of Language and Translation (Oxford, Oxford University Press, 1975), p. 227.
(20) Em The Silence and the Poet, ensaio a todos os títulos seminal, lemos que : «And because our languages have a future tense, which fact is of itself a radiant scandal, a subversion of mortality, the seer, the prophet, men in whom language is in a condition of extreme vitality, are able to look beyond, to make of the word a reaching out past death», George Steiner, Language & Silence : Essays on Language, Literature, and the Inhuman, op. cit., p. 38.

L’auteur
Ricardo Gil Soeiro est Chercheur au Centre d’Études Comparatistes (Faculté des Lettres, Université de Lisbonne). Il a fait partie de plusieurs projets de recherche internationaux, tels que le programme LITEVA (Literary Text in the Visual Age) à Bologne, et le projet MEMORIES : Between Mnemosyne & Lethe.
Il a également participé à de nombreuses conférences internationales, parmi lesquelles on peut citer les suivantes : Lévinas entre nós; Hermes 2005 International Seminar in Literary Studies – Portraits and Stories of the Self (Cascais-Portugal); Arte, Metafísica e Mitologia/Kunst, Metaphysik und Mythologie (Goethe-Institut/Université de Lisbonne); Qué valores para este tempo? (Fondation Calouste Gulbenkian, Lisbonne); Literary Odysseys. The Journeys in and of Literature (Université de Colorado, U.S.A.); Memoria e Oblio, le Scritture del Tempo. Convegno dell’Associazione per gli studi di Teoria e Storia Comparata della Letteratura (Université de Lecce, Italie); ainsi que Espacio, Tiempo y Perspectiva de la Interpretación (I Seminario Internacional Sobre la Investigación en Humanidades, Université Pompeu Fabra, Barcelone, Espagne).
Lauréat de divers prix académiques tout au long de son parcours, Ricardo Gil Soeiro achève à présent sa thèse de Doctorat en Études Littéraires sur la pensée de George Steiner. Sa thèse, intitulée Iminência do Encontro : George Steiner e a Leitura Responsável, examine principalement Real Presences (1989), bien que considérant un éventail de sous-thèmes qui ont pour ambition d’apporter du renouveau dans des œuvres telles que After Babel, Grammars of Creation, or The Death of Tragedy. Dans cette étude, Ricardo Gil Soeiro se propose d’aborder la notion steinerienne de responsabilité implicite dans l’acte de lecture, telle qu’elle a été illustrée dans le tableau de Chardin Le philosophe lisant (1734).

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