A estrada de Cormac McCarthy (16/10/2008)

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Crédits photographiques : Takashi Noguchi (AFP/Getty Images).
Avant, très certainement, de vous proposer un nouveau texte sur La Route que je suis en train de relire (et peut-être même sur le magistral Méridien de sang), roman qui est, incontestablement, avec 2666, le grand événement littéraire de cette année, Henri Carrières m'a adressé cette belle traduction en langue brésilienne de ma critique. Je lui ai bien évidemment proposé de la publier...
Relisant également l'un des plus grands romans français du siècle passé, La plage de Scheveningen de Paul Gadenne, je me disais que, décidément, cette nouvelle rentrée littéraire, du moins en France, se caractérisait par le retour d'une certaine ambition aussi bien romanesque que métaphysique. Dommage que, avec Zone de Mathias Énard et La Porte des Enfers de Laurent Gaudé, cette métaphysique soit celle des lecteurs du Guide des Routards et cette écriture celle d'habiles faiseurs plutôt que de vrais romanciers...
Le moment où la bulle spéculative dans laquelle la littérature française (devenue monnaie sans réelle valeur sustentée par la béquille de la communication, donc des signes sans portée ni pesanteur), s'est enfermée va exploser n'est donc apparemment pas près d'approcher.
Comment le pourrait-il, puisque notre pays paraît tombé dans le cauchemar sans fin de quelque grotesque Scarbo, où les actes n'ont plus de poids, les mots plus de réelle valeur, les romans aucune portée ?

Tradução de Henri Carrières

Dedico este texto à memória de Vincent Murlin. Possa você, na estrada branca, encontrar um pouco de calor e conforto.

Por certo, A estrada de Cormac McCarthy evoca a escrita despojada (e não pobre) do primeiro Hemingway e do último Beckett, repleta de silêncios que parecem às vezes ocupar mais espaço que o próprio texto, a lembrança das mais negras tragédias de Shakespeare (mas também a genial exuberância da sua língua), as imagens do simbolismo demoníaco que Conrad espalhou, como enigmas insondáveis, ao longo do rio lentamente navegado por Marlow, a errância dos personagens das Vinhas da Ira de Steinbeck, a certeza, evocada em O senhor das moscas de Golding, de que a barbárie não pode ser vencida pelo progresso, a fragilidade extrema do véu que, justamente, nos separa dessa barbárie, escondida sob o verniz dos bons sentimentos e da tecnologia, como o lembra A ilha do dr. Moreau (e também A máquina do tempo e A guerra dos mundos) de Wells –, mas é antes de tudo nos romances anteriores de Cormac McCarthy (1) que A estrada deita raízes, sobretudo em Onde os velhos não têm vez. As linhas finais desse romance, com a evocação do sonho do xerife (feito menino de novo, ele acompanha através da noite seu pai que, com uma lâmpada rudimentar, submerge na escuridão), parecem anunciar a aventura que se desenrola em A estrada.
Ele retoma ainda sua forma de escrever tensionada, admiravelmente precisa, soberbamente concisa, sem contudo adotar seu ritmo frenético, nunca renunciando a evocar, mais amplamente do que o havia feito no romance anterior, a sombria beleza de um mundo devastado, nem a abandonar por breves momentos a descrição da errância dos seus dois personagens: é então que a escritura de McCarthy reencontra o sopro hipnótico do Bernanos atormentado de Monsieur Ouine, parecendo evadirse do mundo destruído por uma guerra nuclear total, em busca do derradeiro vestígio de caridade refugiado no uni-verso.
Onde ele está? Num punhado de gestos elementares de sobrevivência, palavras trocadas entre pai e filho, sonhos dolorosos dum mundo passado, partido, alguns encontros, tão belos quanto raros, com homens que não regrediram à selvageria, mal contida por uma sociedade doravante destruída, arrasada.
É, pois, efetivamente, o tempo dos lobos de lendas muito antigas, época de que pai e filho sofrem o rigor implacável: ao menos McCarthy não hesita em nos lembrar que os homens podem manter-se eretos sem nenhuma muleta social. Aos olhos de dois seres humanos que decidiram se apoiar e se agarrar um no outro para não mergulhar no abismo, pouco importa se os demais sobreviventes voltaram a ser lobos. A selvageria deve ser buscada, desejada, abraçada, como toda amante digna desse nome: ela só pode apoderar-se do homem quando este se desvencilha da sua visão inequívoca do que são o Bem e o Mal. Kurtz só se torna a encarnação, ainda que lábil, da selvageria porque decidiu se deixar inundar pelo rio negro. Ele estava oco, é verdade, como não o deixaram de repetir, depois de Conrad, T.S. Eliot, Bernanos e Broch. Os personagens mais tenebrosos de McCarthy não se explicam nunca pelas tão deploráveis causas sociais (uma infância desgraçada, uma mãe espancada, um pai alcólatra, ligeiramente desonesto, uma juventude vivida em meio a prédios decadentes etc.) que diluem nossa responsabilidade num nevoeiro sociológico infecto. Vede Suttree: marginal, pobre-diabo, erradio e, apesar de tudo, grande homem, com algo mais do que minhocas na cabeça. Não há dúvida, de resto, que os maus jornalistas vão censurar ao romancista esse paternalismo, que julgarão conservador ou mesmo reacionário, e que já está presente em No Country for Old Men. Meu Deus, que eles nos deixem ler os romances de McCarthy em paz, esses imbecis choramingas, que não terão nem mesmo visto que esse romance da devastação absoluta funda mais que destrói, funda na própria destruição. Voltaremos a isso.
Quaisquer que sejam as aparentes digressões de McCarthy, ele firma o seu comando magistral da narrativa com um traço que nunca foi tão admiravelmente seguro quanto em A estrada: por um instante, a sua prosa se aventura inutilmente por regiões inimagináveis, lembranças antigas do pai, evocação de um passado imemorial, queda vertiginosa nos abismos do espaço, exploração dos recônditos da Terra, tudo isso para, ao fim e ao cabo, tornar a rodar, como um vento apaziguante, em torno do pai e do filho para... levá-los a modestas aventuras. Levá-los. Levar não é, afinal, o único papel do romancista que trouxe ao mundo personagens feitos do seu próprio sangue? (2)
Cormac McCarthy não deixa os seus personagens um único segundo: ele os observa, lhes prepara algumas supresas singelas (um abrigo, comida, roupas), desenrola sob seus passos uma estrada cujo simbolismo é evidente. A via rupta é o caminho que atravessa o muro do tempo deletério. A imobilidade é a morte, sobretudo no mundo pós-apocalíptico (cuja descrição parece apoiarse nas conclusões popularizadas por Carl Sagan (3) e uma equipe de cientistas em O frio e as trevas), logo impiedoso, que descreve McCarthy. A estrada é essa imagem tipicamente bernanosiana que desconcertou Julien Gracq, como este registra num dos seus ensaios de leitura. A estrada da errância é, de resto, um dos cenários preferidos que, em todos os seus romances, McCarthy não se cansa de retratar.
Literalmente, Cormac McCarthy leva os seus personagens como se fosse um qualquer bom Samaritano invisível tomado de piedade pelos seres de terra, no momento mesmo em que é o rapazinho que parece dar ao pai a força para caminhar, custe o que custar, em direção a um litoral menos selvagem que estéril.
Nosso romancista (mas também, portanto, uma das suas pungentes criações: o menino) merece, pois, o adjetivo (cristóforo) que Bloy ligou ao papel secreto e imenso de Reve-lador do Globo, como chamava a Cristovão Colombo. Estrada e descoberta são as duas faces de uma mesma realidade, marcando simbolicamente as mais famosas odisséias literárias e metafísicas.
Que se trata de revelar nesse romance bárbaro e fulminante? A fundação de uma nova cristandade, pouco importando se Roma foi ou não destruída. Não sabemos, aliás, abso-lutamente nada do que restou da Igreja. Sãonos revelados apenas alguns elementos que, segundo parece, não retiveram a atenção de McCarthy: assim, é dito que a América foi devastada por «seitas sangüinárias». Cormac McCarthy, ao contrário de um Maurice G. Dantec, pouco se preocupa em descrever os combates épicos e sanguinolentos dos inimigos da Igreja contra os últimos representantes da Ordem (4). Ele parece mesmo não se preocupar em saber se atravessa as épocas de ferro, escondido num subterrâneo qualquer, o crânio ridente de Leibowitz, cujo saber conferirá vida a uma civilização (que de novo perecerá, alguns séculos depois da Renascença de uma humanidade praticamente destruída pelo fogo).
Essa nova cristandade será, portanto, idêntica às primeiras comunidades que receberam a Boa Nova: ela se esconderá, ela estará sempre próxima da aniquilação. Apesar disso, ela sobreviverá.
Se Deus existe ou não, que importa? Talvez ele também tenha sido aniquilado pela cinza polvorenta que recobriu o mundo todo, poluiu mares e oceanos e enegreceu a atmosfera, toldando o sol. Para quê, desde já, resgatando a voz de Jó, maldizê-lO, ceder ao desespero, pensar, loucamente, que a vida verdadeira, num mundo quase completamente morto, talvez se tenha refugiado na própria morte, ou afirmar ao incrédulo que Ele – este Deus que ficou louco e é adorado por homens tornados feras – se esconde no filho que, até esgotar as próprias forças, protege o pai, chamado simplesmente de Papai? Se esse rapazinho permanece vivo, se ele não perde a razão ao contemplar a demência, o desespero (o da sua mãe, que se suicidou), a pestilência e o Mal, e logra portanto con-servar o uso da palavra, então é Deus que continua a falar, pois «Se ele não é a palavra de Deus, Deus nunca falou» (p. 8). (5)
Essa fragilidade desconcertante da beleza, que de todo modo está para sempre perdida, basta a Cormac McCarthy – e esse despojamento extremo, essa consumpção da própria linguagem, da música talvez reduzida a alguns sons informes, esse perigo de todos os momentos, esses pequenos gestos fundadores – para afirmar que a luz não pode ser de-vorada pelas trevas: «Ficou deitado observando o menino junto à fogueira. Queria con-seguir enxergar. Olhe ao seu redor, falou. Não há nenhum profeta na longa crônica da terra que não esteja sendo homenageado aqui hoje» (p. 226).
Tem-se mesmo a impressão de que o que sobreviveu à catástrofe – o Resto das velhas profecias judaicas, essa terra seca, fria, escura, sem vida, alguns homens errantes à procura dum pouco de pão e luz – essas poucas coisas ainda são muito aos olhos de Cormac McCarthy, e de que, à maneira de um Mestre Eckhart conseqüente, o Nada é a sua verdadeira morada, a nova Arca da Aliança indestrutível. É a partir do nada que será preciso fundar novamente, pois esse nada é tudo: «Abriu com o pé buracos na areia para os quadris e para os ombros do menino onde ele dormiria e ficou abraçado a ele enquanto mexia em seu cabelo diante do fogo para secálo. Tudo isto feito uma antiga extremaunção. Que seja então. Evoque as formas. Onde você não tem mais nada construa ceri-mônias do ar e sopre nelas» (p. 65).

Notas
(1) Romances aos quais Cormac McCarthy talvez faça alusão ao evocar (p. 41) essas «velhas histórias de coragem e justiça».
(2) Lembro que a tradução francesa do romance de George Steiner é falsa: não O transporte [transport] de A. H., mas, ao contrário, O levamento [portage]..., conforme disse em um texto publicado no Cahier de l'Herne dedicado ao autor. Esse erro revela todo seu sentido quando se percebe que a intenção de George Steiner, no entanto relativamente manifesta, consistiu em traçar um paralelo entre o destino de Hitler e o do Cristo.
67f342b30d77c6ed8bb1a65e92d4155a.jpg(3) Lembremos que Carl Sagan foi o inspirador desta famosa placa de ouro gravada – uma espécie de garrafa de náufrago interestelar, segundo a cômoda imagem de que se valem os jornalistas –, aparafusada nas sondas Pioneer 10 e 11, que deixaram o sistema solar na década de 1980.
(4) Um ponto comum, ou antes dois, entre o texto de McCarthy e o de Dantec: a degenerescência da linguagem, descrita em detalhes no romance de Dantec e, a meu ver, de uma forma por demais biomecânica e, no final, nada convincente. Depois, há o mesmo escurecimento da atmosfera causado por uma nuvem de poeira asfixiante.
(5) Essa e as demais citações do livro de McCarthy foram tiradas da edição brasileira, da Alfaguara. A tradução, feita com esmero e sensibilidade, coube à escritora Adriana Lisboa, ex-aluna do eminente lingüista Daniel Brilhante de Brito, que faleceu no Natal de 2005. [HC]

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