Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa (11/08/2011)

Créditos da foto : Felipe Dana (AP Photo).
Ma note.

Toutes les langues.


«Ah, acho que não queria mesmo nada, de tanto que eu queria só tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era – ficar sendo!»
Grande Sertão: Veredas.*


O excelente prefácio de Mario Vargas Llosa a Grande Sertão: Veredas teria podido, de uma vez por todas, e numas poucas páginas, encerrá-lo na categoria desses romances que, mais do que obras-primas clássicas, cujas virtudes depuradas são tão tranquilizadoras quanto cansativas, nos inquietam e nos seduzem por seu caráter monstruoso. O Anel e o Livro, de Robert Browning, Pedro ou as ambiguidades, de Herman Melville, Heróis e túmulos, de Ernesto Sábato, Auto-de-fé, de Elias Canetti, O Tentador, de Hermann Broch, Os Reconhecimentos, de William Gaddis, Debaixo do Vulcão, de Malcom Lowry, ou ainda 2666, de Roberto Bolaño – esses são exemplos de romances monstruosos, cujo centro de gravidade parece subtraído ao nosso olhar, fora do alcance de toda exegese que tente conter na sua trama, ainda que da mais fina malha, a obra diligentemente descosida e, como a cidade de Carcassonne para Lord Dunsany e William Faulkner, sempre no horizonte, sem que nos seja dado alcançá-la.
Penetrar no dédalo de uma dessas obras é aceitar que o horizonte seja sempre, para nosso olhar, a mão levada à testa em forma de viseira, um risco cintilante.
Diadorim é um título enganoso [para a tradução francesa], pois o original evoca, mais que a personagem de olhos verdes envolta em pesada fragrância erótica, o sertão, que designa, no sentido mais abrangente, a hinterlândia e, no romance de João Guimarães Rosa, as regiões semiáridas do interior do Brasil, pouco habitadas e, quando o são, em que difíceis condições!, ricas quase que só em imensos rebanhos de gado. É fazer do misterioso e inquietante companheiro do narrador o centro de um romance que não o tem, ou melhor, que faz e se desfaz, e depois se refaz, à medida que fala ininterruptamente o narrador. Este não parece nunca ceder às comodidades humanas, como os instantes em que recobramos as energias ou simplesmente calamos para retomar o fôlego e prosseguir com a história sem fim, multifacetada, com um sem-número de ramificações, que Riobaldo parece construir à medida mesmo que fala, fala e fala, sem açodamento ou pressa de concluir. Martelam em nossa cabeça as suas palavras repetidas, esplêndidas, versicolores, e isso muito depois de fecharmos o livro de Rosa. Os grandes romances são constituídos por essa tensão, essa nota surda, baixa, sobre a qual o resto do edifício melódico se apóia e repete o tema erudito, eles são tributários da urgência de dizer, antes que o mundo (isto é, o sertão) não se desfaça por não mais haver quem o conte, que as coisas não se despedacem para não se recompor novamente, como escreve William Butler Yeats em The Second Coming, que a realidade não se inverta, como que virada de ponta-cabeça pelo estrondo de guerras e batalhas, a traição dos traidores, a única palavra, o único gesto, a ínfima palavra esquecidos e que era preciso justamente não esquecer, antes que o universo se desenraíze, e todo sólido se desmanche, e coisas e palavras retornem à lama original. O anarquista é assim o exato oposto do criador, seu inimigo mais encarniçado. Tenho mais respeito pelo último dos rufiões, catando migalhas de poder como um vivandeiro crapuloso de exército se alimenta de restos sórdidos, do que pelo mais desgrenhado dos Heróstratos.
Grande Sertão, construção única, acabada e no entanto repleta de buracos que cabe ao leitor tentar colmatar: epopéia monumental e efêmera do sertão que revira terras encharcadas de água e apodrecidas pela erudição botanista mais delirante, labirinto abundante, de mil ciladas, retratos inumeráveis (os de Quelemém, Medeiro Vaz, Joca Ramiro, Sô Candelário, Diadorim, claro, Norinha, Rose'uarda, e tantos outros, todos memoráveis); torre (torres?) de Babel formando um copioso dossel linguístico constituído de milhares de árvores, perdendo-se nas brumas cálidas de uma floresta delirante; ou verdadeira satanologia picaresca, pergunta-se Vargas Llosa sem se decidir definitivamente por uma dessas três pistas interpretativas (mas se inclina em favor da primeira...), que se engolfam na vegetação luxuriante de Grande Sertão e parecem, em vez de nos indicar, de forma segura, a floresta inalcançável, topar numa árvore.
É preciso justamente não se fiar na exuberância prodigiosa, verdadeiramente barroca, dessa Amazônia de espinhos que é Grande Sertão, nem se deter na constatação feita por Vargas Llosa, que não escreveu nenhuma palavra sobre um dos grandes temas que, não obstante, evoca a todo momento Guimarães Rosa, o da traição. Essa obra, cuja multiplicidade de vistas e a possibilidade de leituras infinitas a convertem num desses romances torrenciais nos quais, segundo o autor de 2666, é necessário precipitar-se destemidamente, é uma obra eminentemente política, e que nos parece de todo imantada, como Teseu à procura do Minotauro, pelo poder e seu indiscutível prestígio.
O poder: não o domínio da palavra, a descrição de Satã, a tentação fáustica, o pacto com o diabo, a luxúria das paisagens brasileiras, a homossexualidade difusa dos laços entre Riobaldo e Diadorim, a interrogação sobre os caminhos do destino, sobre os poderes da literatura, sobre os prestígios do amor, e sei lá eu mais o quê, mas todos esses temas e outros, subsumidos nesse que Vargas Llosa nem tangencia. Aí está, não creio exagerado dizer, o único tema do romance, declinado em uma multidão de figuras, a floresta enfim visivelmente exposta pela luxúria de centenas, de milhares de essências de madeiras diversas, aí está o que Vargas Llosa não viu e que no entanto salta aos olhos.
Esse poder deve ser entendido em seu sentido fundamental, demiúrgico, político pois, segundo escrevi: assim, Thomas Sutpen conseguiu sacar da lama um magnífico domínio, e sua morada não é feita só de pedras e travas, mas do suor e do sangue dos negros que o Mestre parece ter encantado, da extraordinária andaimaria que William Faulkner teve de montar, pregando com percevejos nas paredes do seu quarto de trabalho imensas folhas em que traçava os planos da sua admirável construção verbal. A de Guimarães Rosa não é menos ambiciosa, mesmo se, no mesmo movimento focalizado e difratado pela consciência de um único narrador que fala na primeira pessoa do singular – enquanto Faulkner organiza uma estrondosa polifonia de vozes que parecem dispor-se numa multidão de planos que modelam uma realidade tão complexa quanto inabarcável –, ela pode parecer mais linear que o tour de force de Absalão, Absalão!.
Outra definição possível do grande romance: uma morada não menos real, talvez até muito mais sólida, do que uma construção de cimento e madeira. Uma construção fantasmática, como essas prisões impossíveis representadas por Piranesi, onde o encerramento especular seria tão-somente ilusão erudita. Quem conta faz porém existir a coisa, como confessa o próprio Riobaldo, de maneira menos faustiana do que ingênua. Quem conta não é um falsário ou então, se o é (uma vez que as palavras são impotentes ou mentirosas, todos sabemos), é que existe um domínio do ser em que a ilusão não é privilégio exclusivo daquele que Jean Blanzat denominou o Falsário.
O poder do narrador de Grande Sertão, Riobaldo Tatarana, é o de um homem livre, um desses ferozes jagunços em correria pelas imensidades do sertão que, evocando sua vida aventurosa diante de um interlocutor do qual nada sabemos, se tornará o chefe de um bando de homens sem eira nem beira, depois de destituir Zé Bebelo. Este, por sua vez, jurou vingar o covarde assassinato do lendário Joca Ramiro pelo traidor insigne, o mesmo que, segundo se dizia, vendeu a alma ao diabo, Hermógenes (de seu nome completo Hermógenes Saranhó Rodrigue Felipes), em troca de sucessos retumbantes nas lides da guerra. Mas o intrépido Riobaldo, feito chefe, continuará fascinado pelo poder real, não o da errância (simbolizada pela vida dissoluta e violenta do jagunço que «não passa de ser homem muito provisório»), mas o do grande proprietário, o fazendeiro.
O que é o poder, na sua essência mais profunda, simbólica? O poder é uma luta incessante contra os demônios. Extrair-se da animalidade e aprender a exercer império sobre si mesmo antes de pretender o comando de outros homens são duas tarefas que na verdade perfazem uma só. O poder é portanto uma aprendizagem, uma apreensão e uma compreensão do próprio coração. Há violência, é claro (essa preensão que evoca a mão que se fecha e não solta...), no poder, mas há sobretudo o desejo de edificar um império, entendido esse desejo de edificação no sentido moral, igualmente, se não se pode conceber o poder sem a figura do chefe carismático, vil canalha e orador nato em Todos os Homens do Rei, de Robert Penn Warren, ou tirano sanguinário secundado por um demônio feminino, como Macbeth, de toda forma um e outro bons para o populacho que sempre se deixa conter por homens que se conquistaram.
Ter o poder é edificar uma sociedade tão justa quanto possível, mesmo se, como em todo milenarismo, o Paraíso vindouro está ladrilhado de más intenções (1), mas é sobretudo ter aprendido a dominar-se, e esse domínio é a única liberdade válida. Riobaldo evoca o exemplo, para ele admirável, de Medeiro Vaz, que «largou tudo, se desfez do que abarcava em terras e gados, se livrou leve como que quisesse voltar a seu só nascimento. Não tinha bocas de pessoa, não sustinha herdeiros forçados. No derradeiro, fez o fez – por suas mãos pôs fogo na distinta casa-de-fazenda, fazendão sido de pai, avô, bisavô – espiou até o voejo das cinzas [...]. Ao que, aí foi aonde a mãe estava enterrada [...] então desmanchou cerca, espalhou as pedras: pronto, de alívios agora se testava, ninguém podia descobrir, para remexer com desonra, o lugar onde se conseguiam os ossos dos parentes. Daí, relimpo de tudo, escorrido dono de si, ele montou em ginete [...] e saiu por esse rumo em roda, para impor a justiça» (pp. 54-55). Lembremos que Verbal Kint/Keyser Söze iniciou sua carreira diabólica executando os próprios filhos, sob o olhar de seus raptores. Riobaldo conquistou a si mesmo, pois, por seus atos, tornou-se mais que um homem, cruzando limites, graças a resoluções e atos impávidos: «Eu caminhei para diante. Em, ô gente, eu dei mais um passo à frente: tudo agora era possível» (p. 621). Dessa conquista decorrerão os demais poderes: o da palavra, o de vencer o medo, o de fazer com que os homens lhe sigam na vida e na morte, o de impôr a justiça, pelas armas se preciso, o de matar os homens a sangue frio e a família (à exceção da esposa) do traidor Hermógenes.
Essa vontade, talvez diabólica, de querer dominar-se pode ter uma finalidade insuspeita, mística, como explica Riobaldo: «Compadre meu Quelemém, muitos anos depois, me ensinou que todo desejo a gente realizar alcança – se tiver ânimo para cumprir, sete dias seguidos, a energia e paciência forte de só fazer o que dá desgosto, nojo, gastura e cansaço, e de rejeitar toda qualidade de prazer. Diz ele; eu creio. Mas ensinou que, maior e melhor, ainda, é, no fim, se rejeitar até mesmo aquele desejo principal que serviu para animar a gente na penitência de glória. E dar tudo a Deus, que de repente vem, com novas coisas mais altas, e paga e repaga, os juros dele não obedecem medida nenhuma» (pp. 210-211).
Assim, toda história evocativa do poder é uma ontologia, visto que se trata de desafiar as forças de destruição e desordem, força contra força, poder contra poder, numa dessas paisagens metafísicas ao gosto de Cormac McCarthy: «Sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar» (p. 28). O tema do Poder, que escrevo em maiúscula para distingui-lo de suas múltiplas encarnações, se declina, em nosso romance, sob diferentes figuras, que de resto englobam os três temas destacados por Vargas Llosa: poder da palavra, que é o da epopéia, lembrando, mas com que segurança e discrição!, a técnica da intercalação do Manuscrito encontrado em Saragoça (2). O narrador, que sempre fala na primeira pessoa do singular, faz surgir, quaisquer que sejam os limites da linguagem a evocar o passado (limites que nunca perde a chance de reiterar ao seu misterioso interlocutor), quem quer que sejam os interlocutores (Quelemém, Alaripe, nós mesmos...), um mundo de uma riqueza apaixonante, de uma exuberância de animais, plantas e árvores, de imagens, de cenas, de registros e de mudanças de ritmos que, em português, mesmo se a tradução [para o francês] de Maryvonne Lapouge-Pettorelli é sob todos os aspectos admirável, devem ser de uma virtuosidade desconcertante.
Aquele que, como nosso narrador, detém o poder de contar sem nunca parar (estaria condenado a perecer se o fizesse, como a princesa?) é um verdadeiro demiurgo, pois evoca um tempo que passou e coisas que não existem mais, cujo nome mudou: «Perto de lá tem vila grande – que se chamou Alegres – o senhor vá ver. Hoje, mudou de nome, mudaram. Todos os nomes eles vão alterando. É em senhas. São Romão todo não se chamou de primeiro Vila Risonha? O Cedro e o Bagre não perderam o ser? O Tabuleiro-Grande? Como é que podem remover uns nomes assim? O senhor concorda? Nome de lugar onde alguém já nasceu, devia de estar sagrado» (p. 52). Aquele que guarda a lembrança das coisas passadas é portanto aquele que guarda intacto o nome dessas coisas, sob pena de que a história que ele conta, cheia de som e fúria, perca o sentido: «O que eu guardo no giro da memória é aquela madrugada dobrada inteira: os cavaleiros no sombrio amontoados, feito bichos e árvores, o refinfim do orvalho, a estrela-d’alva, os grilinhos do campo, o pisar dos cavalos e a canção de Siruiz. Algum significado isso tem?» (pp. 165-166).
Pouco importa a resposta, da qual, para dizer a verdade, desconfiamos, tanto o narrador, Riobaldo, reitera o temor de que o simples fato de contar tenha sentido, e não a História em si, cujas peripécias narra incansavelmente. Com que fim? Salvar as aparências, se posso dizer, no sentido próprio da expressão, ao garantir que a palavra não se distancie da realidade ou, ao menos, que ela possa tentar perfurar-lhe a opacidade, atingindo, quem sabe, a referência última de todo dizer e de todo contador, o Verbo inacessível, reluzindo do fundo da língua escavada incessantemente: «Então, onde é que está a verdadeira lâmpada de Deus, a lisa e real verdade?» (p. 485). A verdade é sem dúvida inencontrável, mas ao menos o contador prodigioso pode, graças à sua existência mesma, servir de garante do que viu.
Poder do Mal mas sobretudo poder sobre o Mal: a principal personagem de Grande Sertão, bem mais que o estranho companheiro do narrador, é o diabo, coberto de dezenas de nomes diversos, de que um dos mais temíveis sectários será, aos olhos de Riobaldo, o traidor Hermógenes. Em nosso romance, o Mal se vale de inúmeros disfarces, e o mais aterrorizante talvez seja o da selvageria de homens que chegam ao extremo de massacrar os cavalos do adversário, obrigado a defender-se numa grande fazenda assaltada de todos os lados.
O status ontológico do Mal em nosso romance mereceria um estudo à parte. Suficiente é citar esta passagem assaz ilustrativa da inconstância (no sentido que Pierre de Lancre dava ao termo) das forças obscuras: «a gente criatura ainda é tão ruim, tão, que Deus só pode às vezes manobrar com os homens é mandando por intermédio do diá? Ou que Deus – quando o projeto que ele começa é para muito adiante, a ruindade nativa do homem só é capaz de ver o aproximo de Deus é em figura do Outro?» (p. 49)
Limitemo-nos a constatar que, para o narrador, Satã só existe porque nos faz acreditar que não existe, mesmo se Riobaldo, extravagante teólogo, não hesita em afirmar que é Deus o verdadeiro Ausente (3). Uma das mais belas cenas do romance nos mostra um Riobaldo que, para triunfar do medo (um motivo recorrente) e conquistar a própria vontade, penetra, ao anoitecer, numa imensa floresta e invoca o demônio para que apareça diante dele. Mas o demônio, aqui representado da maneira mais popular e banal, não aparece. Apesar disso, Riobaldo não parecerá menos inquietante, inclusive aos olhos de seu grande amigo Diadorim: «Do Tristonho vir negociar nas trevas de encruzilhadas, na morte das horas, soforma dalgum bicho de pêlo escuro, por entre chorinhos e estados austeros, e daí erguido sujeito diante de homem, e se representando, canhim, beiçudo, manquinho, por cima dos pés de bode, balançando chapéu vermelho emplumado, medonho como exigia documento com sangue vivo assinado, e como se despedia, depois, no estrondo e forte enxofre. Eu não acreditava, mesmo quando estremecia. T’arreneguei» (p. 585).
É depois dessa noite que Riobaldo retira o comando das mãos de Zé Bebelo, o qual no entanto declara admirar por sua inteligência e fino senso de tática guerreira (ou antes de guerrilha), como se o fato de triunfar do medo desse ao homem o poder de se elevar acima dos demais, e portanto de comandá-los, sem que nos seja torturante a questão de saber se somos ou não responsáveis pelo mal cometido: «Mal que em minha vida aprontei, foi numa certa meninice em sonhos – tudo corre e chega tão ligeiro –; será que se há lume de responsabilidades? Se sonha; já se fez...» (p. 27), interroga-se Riobaldo, reencontrado, nesse lance, as dúvidas do mais negro demônio de Shakespeare.
Mas Riobaldo, que, entrado na velhice, continua a querer «decifrar as coisas que são importantes» (p. 134) – questionando a realidade do Mal e, sobretudo, de seu pacto com a serpente, para retomar um belo título de Mario Praz –, não terminará como Macbeth, mesmo se viver, sim, mil vezes sim!, é muito perigoso, segundo o refrão lancinante dessa imensa sinfonia que é Grande Sertão. Sinfonia que é urgente escutar de novo, e reler, como todo grande romance deve ser relido não uma ou duas vezes, mas várias vezes, e não apenas para saborear um pouco mais as sutilezas do texto ou compreender de que maneira o autor ocultou eruditamente o segredo de Diadorim ou como o homem se constitui, segundo reza o adágio, da soma de suas ações mas também de seus atos abortados, de acordo com a grande ideia que Henry James ilustrou genialmente em A fera na selva (4). Para além de tudo isso, será preciso reler Grande Sertão enquanto nos sobrar o alento desse «homem humano» (p. 623), tão efêmero quanto infinito.

Notas
* As citações de Grande Sertão: Veredas remetem à edição eletrônica do romance, disponível na internet, da Nova Aguillar (João Guimarães Rosa, Ficção completa em dois volumes, vol. II, 1994). A passagem da epígrafe está na página 599. O prefácio de Mario Vargas Llosa a que se referirá o autor da crítica é parte da edição francesa (Diadorim, éditions 10/18, coleção Domaine étranger, 1995, trad. de Maryvonne Lapouge-Pettorelli). Foi publicado em português na Folha de S.Paulo de 30/3/1991. [Nota do Tradutor].
(1) Alguns exemplos dessa dimensão milenarista: «que [neste mundo] não se pode ver a força carregando nas costas a justiça, e o alto poder existindo só para os braços da maior bondade» (p. 554). A vontade de poder de Riobaldo assume até acento messiânico, em que a recapitulação das coisas e dos seres tem valor simbólico de gesto noáquico, assim como de constituição do misterioso Resto evocado por certos textos proféticos do Antigo Testamento. Outra passagem no mínimo explícita: «Pois os próprios antigos não sabiam que um dia virá, quando a gente pode permanecer deitada em rede ou cama, e as enxadas saindo sozinhas para capinar roça, e as foices, para colherem por si, e o carro indo por sua lei buscar a colheita, e tudo, o que não é o homem, é sua, dele, obediência?» (p. 725).
(2) Intercalação que tenta colar à complexidade da vida, inclusive às simples mudanças de humor do narrador, cuja arte continua a aprender graças à qualidade da atenção do seu interlocutor: «A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto» (p. 132). É verdade que Riobaldo não conta «uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente» (p. 134).
(3) «Olhe: Deus come escondido, e o diabo sai por toda parte lambendo o prato...» (p. 71) Ou ainda: «O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo» (p. 77).
(4) Como grande admirador de Browning, notemos que James apenas retomou um motivo constantemente evocado desde The Statue and the Bust, que o romancista brasileiro ilustra a seu turno, como todo escritor a braços com a matéria histórica: «Mas foi nesse lugar, no tempo dito, que meus destinos foram fechados. Será que tem um ponto certo, dele a gente não podendo mais voltar para trás?» (p. 406).

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